A origem, história e sintomas da Encefalopatia Espongiforme nas vacas, ovelhas, gatos, veados e casacos de pele, a doença das vacas loucas,
Creuztfeldt-Jacob nas suas quatro variantes e o kuru do Foré.
Há doenças que têm acompanhado o Ser Humano ao longo da sua curta História. Uma delas é um grupo de doenças progressivas, invariavelmente fatais e que afetam o cérebro
(encefalopatias)
de muitos animais. Foram descritas pelo médico grego Hipócrates no século 5 AEC e pelo escritor romano Flávio Vegécio nos séculos 4 e 5 nas populações de vacas e ovelhas ainda que já suspeitassem de haver uma variante humana da doença. Mas só em 1921 é que o neurologista alemão Alfons Jacob (1884-1931
) identificou a doença nos seres humanos, que recebeu o seu nome e o do seu colega neurologista Hanz Creutzfeldt (1885-1964
), a infame Doença de Creutzfeldt-Jacob. É a Encafalopatia Espongiforme por o cérebro das vítimas afetadas ficarem com o aspeto de uma esponja ao microscópio. O médico estado-unidense Daniel Gajdusek (
1923-2008
) identificou depois outra variante da mesma doença conhecida como kuru da Papua-Nova Guiné pelo que recebeu o Prémio Nobel da Medicina em 1976. Falou-se em Nobel no artigo Seda explosiva.
Estas doença são provocadas por anomalias nas proteínas, que são uma parte do corpo de todos os seres vivos e que têm diversas funções como formarem e manterem os músculos, servirem como reagentes nas reações químicas necessárias à vida, serem as responsáveis pela duplicação do ADN das células, permitindo que estas se multipliquem, repararem o ADN, servirem de transportadoras químicas e ainda outras. Todas as proteínas são constituídas por cadeias de aminoácidos. Quantos mais aminoácidos tem, mais comprida é a proteína. Falou-se no ADN no artigo Energia evolutiva.
Só há 20 aminoácidos diferentes mas as proteínas podem ter até centenas deles. A função de cada proteína é determinada pelos aminoácidos que a compõem e principalmente pela forma como a cadeia de aminoácidos se enrola (
as proteínas não formam «fitas» de aminoácidos, formam novelos de aminoácidos
). As proteínas cuja forma e composição lhes dão funções «ativas» (como reagir, duplicar, reparar,...
) chamam-se enzimas. As enzimas são indispensáveis ao funcionamento e manutenção do corpo. Por exemplo, as enzimas são em parte responsáveis pela digestão dos alimentos (a par com o ácido clorídrico e dos movimentos do estômago
). As enzimas cuja função específica é decompor uma determinada molécula recebem o sufixo «ase». Por exemplo, a enzima que digere a lactose, o açúcar no leite de vaca, denomina-se lactase. Como todos os açúcares, o nome termina em ose (
como a sacarose, frutose,...
) e a enzima responsável pela sua decomposição (se houver alguma específica como na lactose
) terminará em ase.
Portanto as enzimas ativam, transformam, mexem ou transportam. Mas há enzimas mutantes que transformam outras proteínas em cópias de si mesmas. Essas enzimas mutantes chamam-se priões, partículas infecciosas proteicas com ausência de ácidos nucleicos, assim nomeadas em 1982 pelo médico estado-unidense Stanley Prusiner. Um prião desloca-se pelo corpo transformando proteínas em cópias suas. Tendo em conta a universalidade das presença e da função das proteínas nos organismos percebe-se a sua periculosidade. Algumas das doenças que há já algum tempo fazem parte da História são
causadas por priões. A mais falada é a Doença das vacas loucas (Encefalopatia Esponjiforme Bovina) e a sua variante humana, a Doença de Creutzfeldt-Jakob. Há também esta doença nas ovelhas e cabras chamada Paraplexia Enzoótica dos Ovinos. Há nas Martas (
Mustela lutreola - Marta europeia e na Neovison vison - Marta americana e de que são feitos os preferencialmente os casacos de pele
) e nos veados.
Esta doença é provocada por priões que se encontram no cérebro e que vão substituindo o tecido saudável no cérebro por quistos e provocam a apoptose das células saudáveis. Por isso, o cérebro vai perdendo capacidades e vai-se tornando esponjoso, devido aos buracos que os priões vão causando. Os priões não são susceptíveis a tratamentos para a sua erradicação. Não são eliminados por proteases específicas nem por enzimas nem por quimioterapia ou radioterapia. Se forem colocados num ambiente fechado a 134ºC durante 18 minutos (procedimento usual para esterilizar tecidos
) ainda assim não são eliminados. A Doença de Creutzfeldt-Jacob pode surgir por mutação de um gene (causa genética
), pela ingestão de carne de um animal infetado (causa variante
), por implantes com instrumentos médicos infetados (causa iatrogenética
) e por vezes sem causa determinada (espontânea
).
Após a infeção inicial, os primeiros sintomas podem demorar décadas a surgir mas o progresso da doença a partir dessa altura é rápida e conduz à morte certa. Os sintomas incluem ataxia (
do grego ατάξις, sem coordenação
), amnésia (do grego αμνησια), mudanças de comportamento e culminando em fraqueza muscular, mioclonia (do grego myo “músculo” e clonic “espasmo”), demência e a inevitável morte. Um exemplo de uma mioclonia é os soluços.
Existe uma curiosa teoria de que os priões poderão estar envolvidos no forte tabu que a generalidade das sociedades humanas têm em relação ao canibalismo. Ingerir corpos de pessoas mortas acarreta o risco de ingerir os seus priões, pelo que as pessoas que o faziam podiam «enlouquecer» algum tempo depois. O tabu terá surgido com a interpretação dos sintomas como castigos dos espíritos ou dos deuses pela ingestão de seres humanos.
Uma das sociedades conhecidas que praticavam o canibalismo funerário é a Tribo Foré na Papua Nova-Guiné, com cerca de 20 mil pessoas. Alguns membros desta tribo (
que só oficialmente terá deixado o canibalismo
) sofrem de kuru, uma patologia semelhante à Doença de Creutzfeldt-Jakob provocada por um prião na carne humana que ingerem. A palavra kuru é da língua Foré e significa “tremor”. Os membros da família que faleciam eram enterrados durante dias e depois eram consumidos para ajudar a libertar o seu espírito do corpo pelas mulheres e crianças, em especial o cérebro enquanto os homens consideravam que consumir carne humana os enfraqueceria. O prevalência de kuru entre os Foré era 8 ou 9 vezes superior nas mulheres por isso. Desde o fim do canibalismo funerário nos anos 60, apenas um caso por ano da doença surge em média. Em 2009, foi descoberta uma mutação em alguns habitantes da Papua-Nova Guiné que lhes conferem grande resistência ao kuru. A evolução a ocorrer perante os nossos olhos. No artigo Tentilhões marcados falou-se na longa História da Teoria da Seleção Natural.